sexta-feira, 30 de março de 2012

Nossa Senhora e a Paixão de Cristo




Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados muitos corações. E uma espada de dor transpassará a tua alma”. (Lc 2, 34-35)

            A profecia de Simeão constitui o segundo anúncio que levará a Virgem a uma compreensão mais profunda do mistério do seu Filho. Tais palavras predizem um futuro de sofrimento para o Messias. Muitos santos meditaram a Paixão de Nosso Senhor, contemplando também o martírio da Ss. Senhora, enquanto o de Cristo se deu na carne, a Imaculada sofrera no coração.
            Para o entendimento desta imensa dor é necessário conhecer o amor que Jesus nutria por sua Mãe e vice-versa, como bem explica São Luís Maria Grignion de Montfort ao dizer que “o novo Adão desceu ao seu Paraíso terrestre, o seio virginal de Maria; o Deus feito homem encontrou a sua liberdade em se ver aprisionado em seu ventre; foi Ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós e também por meio Dela iniciou os seus milagres”.
            Meditando as sete dores de Maria Santíssima, constatamos que a sua convicção na promessa do Altíssimo a fortalecia em meios aos sofrimentos do Filho, e que cada atitude dela deve ser atualizada em nossas vidas, para a maior glória de Cristo e o efetivo seguimento a Ele.
1)        Profecia de Simeão
A primeira grande dor foi moral ao ouvir o velho Simeão lhe apresentar a espada de dor, Nossa Senhora vai ao ritual da purificação não por necessitar da purificação, mas por obediência a Lei. Diante de Simeão apenas se calou e “guardou todas as coisas no coração” (cf. Lc 2, 19).
Atitude daqueles que confiam incondicionalmente em Deus e na autenticidade do Evangelho. Aprendamos com Ela a Obediência cega a Deus!
2)        Fuga para o Egito
Um terrível massacre aos inocentes do Egito se inicia, e o grande Protetor da Sagrada Família assegura a integridade de sua família. As circunstâncias da fuga evidenciam a atitude daqueles que agem unicamente por Deus, na reta intenção de agradá-lo.
Ela foge do mal, devemos fazer o mesmo em meio às ocasiões de pecado, nas maiores provações pode haver alegria quando se sofre por amor a Deus. Aprendamos com Ela a não medirmos esforços para executar bem aquilo que o Senhor nos pede, clamando pela Sabedoria divina para agirmos com discernimento!
3)        Perda de Jesus no Templo
            Imensa foi a aflição de Maria e José na procura por Jesus, essa atitude nos ensina a buscá-lo sem descanso, especialmente quando “o perdermos” pelo pecado. Essa deveria ser nossa única aflição. Aprendamos com Ela a sofrer pela vontade de Deus, muitos pais retém o chamamento dos filhos para uma vida plena em Cristo, na ilusão de que seus filhos são de sua propriedade, porém o amor natural não pode superar a vontade de Deus. Imitemos a Mortificação universal da Virgem de Nazaré para que o nosso desejo para entrar em conformidade com a divina vontade!
4)        Encontro com Jesus carregando a Cruz
            Podemos afirmar que Nossa Senhora se alegrava com os milagres de Jesus, mas não esquecera um só dia das palavras de Simeão. Aquele que durante trinta anos permaneceu sob seus cuidados, lançava-se agora no mundo propagando a Boa Nova, estando sujeito ao julgamento e perseguição do mundo. Quão grande foi a dor desta Mãe ao saber da traição de Judas, ao contemplar a agonia do Filho no horto das Oliveiras, a tríplice negação de Pedro, a escuta do apelo a Crucificação...
            Quando seus olhares se cruzam no momento em que o Redentor caminha para o Calvário, não existem murmurações. Mais uma vez a Mãe das Dores nos ensina a sofrer bem, unindo os nossos sofrimentos aos de Cristo, de outra forma a tristeza invade a nossa alma, e rapidamente ficaremos absortos pelo grande mal da depressão. Para que a cura aconteça é necessária uma vida de Contínua oração!
5)        Morte de Jesus
            A Mãe de Deus participa da agonia de Jesus de uma maneira indescritível, toda a dor suportada por Cristo na carne, assim dizem os Santos, Ela sofreu no coração. Meditando nas dores de Nossa Senhora cada um encontra alívio para as suas dores! O Senhor Jesus sofreu mais do que qualquer ser humano pela perfeição de sua natureza, e a sua Mãe permanecia de pé suportando toda aquela dor, apenas pela fé.
        Essa dor também nos recorda da necessidade de carregar a Cruz, ninguém se santifica sem o sofrimento. Aprendemos com Ela a Fé viva para crermos que após carregarmos a Cruz herdaremos a felicidade eterna!
6)        Jesus é descido da Cruz
            A morte de Jesus é o ponto culminante da Redenção, Ele assume incondicionalmente os sofrimentos a cada momento. Notemos que o corpo fora entregue num estado deplorável a sua Mãe, que tantas vezes cuidou do Senhor, só que desta vez cuidara do seu Filho morto, consumido de amor à humanidade, com absoluto zelo.
            Na Santa Missa o sacrifício de Jesus se atualiza, aprendamos com Ela a termos o devido zelo, a adoração perfeita e a reverência total ao Corpo de Cristo que nos é oferecido em cada comunhão. Praticando a sua Profunda Humildade reconheçamos a grandeza desse Deus que não cessa de se dar e amar aos seus filhos!
7)        Sepultamento de Jesus
            Jesus havia morrido de uma forma brutal para manifestar o seu amor por nós, deveriam existir no coração daquela Mãe um misto de sentimentos, tamanha e profunda dor, mas com certeza havia uma esperança incondicional na promessa da Ressurreição.
            É preciso esperar muitas vezes o tempo de Deus se realizar em nossas vidas, para tanto olhamos mais uma vez para a Bela Senhora e aprendemos a confiança absoluta na providência divina. Aquele que mais se abandona nos braços do Pai, pode sentir o seu amor. Numa atitude de entrega filial ao Pai, estejamos como a Menina de Nazaré, dispostos a fazer sua vontade, e dizer um sim pleno a sua divina vontade.

            O sentido de nossas vidas deve consistir na maior glória de Deus, e somente Aquela que viveu só para esta causa pode nos ensinar a “fazermos tudo aquilo que Ele nos disser” (cf. Jo 2, 5). Eis o segredo de santidade... Imitar as virtudes de Nossa Senhora, a verdadeira discípula-missionária de Cristo!

Referências:
MONTFORT, São Luís Maria Grignion de. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria. Anápolis: Serviço de Animação Eucarística Mariana, 2002.
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de, 1949 – O Socorro da Virgem Maria e as suas sete dores/ Felipe Rinaldo Queiroz de Aquino - 1ª Ed. Lorena: Cléofas, 2010.



Mônica Mariana

Missionária DMD, graduanda do curso de Teologia.







Para citar esse artigo:
Mônica Mariana -  "Nossa Senhora e a Paixão de Cristo"
Fraternidade Discípulos da Mãe de Deus
http://formacaodiscipulosdamaededeus.blogspot.com.br/2012/03/nossa-senhora-e-paixao-de-cristo.html
Online, 30/03/2012

quinta-feira, 8 de março de 2012

Que nos tornemos melhores...[1]


A perene validade do apelo quaresmal
Dom Matias Fonseca de Medeiros OSB*
O retorno desses dias que os mistérios da salvação humana marcaram de modo mais especial e que precedem imediatamente a festa da Páscoa, exige que nos preparemos com maior cuidado por meio de uma purificação espiritual.[2]
                Todos os anos, a Igreja, no tempo da Quaresma, convida seus filhos e filhas a acessar a misericórdia divina através de um programa de conversão evangélica. As celebrações litúrgicas desse período nos inserem naquela atmosfera penitencial que, paulatinamente, nos vai conduzindo ao monte santo da Páscoa. Por outras palavras, secundando o que dizia São Leão Magno, nesses quarenta dias dedicados a uma cuidadosa purificação espiritual, nos preparamos, reverentes, para usufruir os dons pascais.[3]
UM PROCESSO TERAPÊUTICO
                Com efeito, a penitência quaresmal se apresenta como um processo terapêutico de cura do pecado e do mal que, voluntariamente ou não, praticamos. Já São Paulo advertia, na Carta aos Romanos, para essa realidade contraditória e incoerente que habita o ser humano: Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero.[4] Contudo, longe de nos acomodarmos a um pessimismo estéril, sabemos que a graça de Cristo torna-se força de renovada transformação quando lhe abrimos de par em par as portas do coração. Por isso mesmo, com afetuosa solicitude, a Mãe Igreja propõe a seus filhos esse tempo favorável, exortando-os a não receber em vão a graça divina.[5] Mediante um conjunto de práticas exteriores, queremos dar significado a nossa disposição interior para mudar de vida. São Bento, ao organizar a programação quaresmal de seus monges, elenca algumas dessas práticas.[6]
Para vivenciar ao inverso a palavra de São Paulo há pouco mencionada, ou seja, fazendo o bem que queremos e evitando o mal que não queremos mais praticar, é necessário, antes de tudo, entrar no próprio íntimo e buscar a conversão do coração, pedindo com o Salmista: Criai em mim, ó Deus, um coração puro, renovai em mim um espírito resoluto.[7] Sem essa «transformação cardíaca», os atos de penitência, além de desprovidos de qualquer sentido, não passariam de meras formalidades. E contra tais extereótipos inócuos, o Salvador é taxativo no Evangelho: Ai de vós...[8]
Na verdade, o Senhor está sempre esperando de nós aquilo que, com tanta justeza, o Salmista também exprime: Sacrifício para Deus é um espírito contrito; não desprezais, ó Deus, um coração contrito e humilhado.[9] Só um coração assim, convertido e restaurado, será capaz de produzir frutos de autêntica santidade. Análogo ensinamento vamos encontrar no Catecismo da Igreja Católica: Este esforço de conversão não é apenas uma obra humana. É o movimento do «coração contrito» atraído e movido pela graça a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou primeiro.[10]
UM CORAÇÃO CONTRITO
Falamos de coração contrito. O profeta Ezequiel trata, em seu livro, da remoção de um coração de pedra que será substituído por um outro de carne: Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo. Removerei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne.[11] Através da palavra profética, Deus nos convida a uma mudança de atitudes que consiste no «amolecimento» do coração contaminado pelo pecado e pelo orgulho. A contrição é a etapa de passagem do coração de pedra para o coração de carne, ou seja, do coração ferido pelo mal, pesado e enrijecido, para o coração purificado, renovado e recuperado na ordem da graça.
A contrição que converte é, sem dúvida, conseqüência da penitência interior, que justifica as práticas penitenciais exteriores. Melhor explicando: os sinais visíveis de penitência expressam seus movimentos interiores.
E o que é a penitência interior? É uma orientação radical de toda a vida, um retorno, uma conversão para Deus de todo o nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às obras más que cometemos. Ao mesmo tempo, é o desejo e a resolução de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda de sua graça.[12]
Sabendo de tudo isso, nada mais resta senão pôr em prática, no cotidiano da vida, o que o Senhor está, aqui e agora, pedindo, a cada um de nós: Precisais deixar a vossa antiga maneira de viver e despojar-vos do homem velho, que vai se corrompendo ao sabor das paixões enganadoras. Por outro lado, precisais renovar-vos, pela transformação espiritual de vossa mente, e vestir-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira justiça e santidade.[13]
UMA «VIDA QUARESMAL»
É costume nos mosteiros beneditinos que, no início da Quaresma, os monges entreguem ao Abade uma cédula na qual escrevem algumas penitências que se propõem a praticar, durante a sagrada quarentena, com o propósito de se corrigirem das faltas cometidas. Pretendem assim não apenas celebrar a Santa Páscoa com o coração purificado de todas elas, mas também melhorar daí por diante a qualidade e a prática de sua vida espiritual e humana. Concretamente, é o esforço que cada um realiza, buscando a transformação da própria mente a fim de tornar-se um homem novo, isto é, viver, com o auxílio da graça, na verdadeira justiça e santidade.
Embora a Regra de São Bento trate da observância da Quaresma em um capítulo específico,[14] contudo, em muitas de suas passagens, o tema da conversão está sempre presente. No mencionado capítulo, quando se afirma que a vida do monge deve ser, em todo o tempo, uma observância de Quaresma,[15] claro está que o inteiro viver do monge é um processo gradual e permanente de renovação interior. Neste sentido, uma passagem do Prólogo da mesma Regra é bastante significativa: Espera o Senhor todos os dias que nos empenhemos em responder com atos às suas santas exortações. Por essa razão, os dias desta vida nos são prolongados como tréguas para a emenda dos nossos vícios, conforme diz o Apóstolo: «Então ignoras que a paciência de Deus te conduz à penitência?». Pois diz o bom Senhor: «Não quero a morte do pecador, mas sim que se converta e viva».[16]
                Portanto, o processo terapêutico de cura do pecado, já aludido, não se restringe apenas ao tempo quaresmal, que devemos guardar com toda a pureza,[17] mas é diário e perdura a vida inteira. Todos têm de se renovar a cada dia para evitar a ferrugem inerente à condição mortal, e não há ninguém que não deva se esforçar para progredir no caminho da perfeição.[18]
                A quem deseja se converter, Deus concede tempo. E, porque é bom, espera sempre que nos tornemos melhores.[19] Tornar-se melhor significa deixar a graça divina operar em nosso íntimo, consentir que ela aja. É o que faz São Bento dizer: O que achar de bem em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo.[20]
                O que a Regra Beneditina preceitua para os monges é válido para todo e qualquer cristão.
Para efetivar essa terapia penitencial é preciso tomar as devidas providências. Quais?
A ATITUDE FUNDAMENTAL: ESCUTAR
Primeiramente, escutar. O ato de escuta é condição preliminar para se realizar algo. A palavra escutada pede, exorta: Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova.[21] Converter-se e crer, dois movimentos que se completam. A voz divina que, «naquele tempo», começava assim sua pregação na Galiléia, continua admoestando os homens e as mulheres de todos as épocas a se transformarem. Por conseguinte, que cada um, interpelado por semelhante convite, mude de conduta e viva! [22] É fundamental, para tanto, nos dispormos ao diálogo com esse Deus paciente, que prolonga como trégua os dias desta vida para a emenda dos nossos vícios: ele é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo. Não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas.[23] Vejamos como isso pode acontecer.
O penitente começa se dispondo, com um coração filial,  a escutar o Filho recomendado pela voz paterna: Escuta, filho: este é o meu Filho amado.[24] Se Cristo, o Filho amado do Pai, é objeto do nosso amor preferencial: Nada absolutamente anteponham a Cristo,[25] escutar sua palavra é caminho seguro para quem pretende enveredar pelos caminhos de uma vida santa. Ela nos estimula a fazer, o quanto antes, aquele «transplante cardíaco» anunciado pelo profeta Ezequiel e reavivado pela admoestação do Salmista: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações.[26]
São Gregório Magno, em duas passagens de seus escritos, dá a medida exata da importância que tem a Palavra de Deus na vida de todo cristão: Realmente, o que é a Sagrada Escritura senão uma carta do Deus onipotente a sua criatura?... Procura meditar todos os dias a palavra de teu Criador. Começa a conhecer, na palavra de Deus, o coração de Deus para desejares, mais ardentemente, os bens eternos, e que teu coração se inflame de desejos ainda maiores pelas alegrias do céu.[27] E: A Palavra de Deus cresce juntamente com quem a lê... Dela tirarás proveito na medida em que nela progredires... Melhor se descobre o maravilhoso poder da Palavra de Deus quando o coração de quem está lendo é penetrado de amor pelas coisas vindas do alto. [28]  
Por isso, a prática da lectio divina, recomendada com maior empenho no tempo quaresmal, ressalta o valor da Sagrada Escritura como única e exclusiva fonte inspiradora da conversão cristã. Mesmo assim, não basta somente escutá-la. Nossos propósitos e esforços ascéticos só lograrão êxito se forem bem alicerçados pela obediência e pela oração.
Pela atitude de obediência: Ouvem o que digo e me obedecem,[29] o cristão responde por atos as interpelações que o Senhor lhe dirige enquanto ouve, coração atento, sua palavra, procurando executar eficazmente[30] tudo o que dela hauriu. Cumprindo-a com fidelidade, ele será feliz: Andai pelos caminhos que vos ordenei para serdes felizes.[31] 
Pela oração, o cristão volve o olhar para o alto, confiando e esperando que o Senhor Jesus, seu modelo de oração e de vida, levará a bom termo a obra nele começada. Pois, como ensina São Bento: Antes de tudo, quando encetares algo de bom, pede-lhe com oração muito insistente que seja por ele plenamente realizado[32].
Escutando a Deus na lectio divina e lhe respondendo na obediência e na oração,[33] o cristão concretiza em sua vida aquele diálogo essencial para que a vida divina, nele semeada no dia do Batismo, possa crescer e produzir abundantes frutos.


AGIR SOBRE SI MESMO
Partindo dessa premissa, chegamos ao segundo estágio da terapia penitencial: agir. Por outros termos: a escuta amorosa e obediente da Palavra de Deus, que cresce juntamente conosco, nos instiga a responder com atos às suas santas exortações.[34] É preciso mudar a nossa maneira de pensar e de agir, dar uma nova orientação à própria vida, deixar o Espírito Santo agir à vontade para, com seu divino cinzel, esculpir na pedra bruta que somos a imagem de Jesus Cristo.
Estamos agora bem no cerne da questão. Mais acentuados no período quaresmal, nossos propósitos de conversão, como já foi dito, não se restringem apenas a este tempo. Pois, o cristão, como alguém que verdadeiramente procura a Deus, é também um combatente. E sua luta, objetivando a perfeição da caridade, só terá fim quando ele tiver dominado e extirpado os vícios da carne e dos pensamentos,[35] chegando então aos maiores cumes da doutrina e das virtudes.[36] Logo, sua Quaresma é perene.
Trata-se, por conseguinte, de um processo de purificação e iluminação da própria consciência à luz da Palavra de Deus. Processo este que supõe necessariamente determinadas rupturas em vista da escolha que fizemos por Cristo.
A primeira e mais elementar dessas rupturas é a renúncia à vontade própria, para realizar, na obediência da fé, a vontade de Deus. Por outras palavras: a renúncia àquela e o conseqüente cumprimento desta são condições essenciais para se viver na intimidade divina. É o que Jesus proclama: Todo aquele que faz a vontade do Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.[37]
A conversão é ainda um trabalho interior que consiste em restaurar imagem de Deus na alma, ofuscada pelo pecado de nossos primeiros pais. Esse labor de transfiguração evangélica, que é dinâmico, se torna efetivo no abandono do pecado para abraçar a vida da graça. A este respeito, São Paulo recomenda: Eu vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso verdadeiro culto. Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito.[38] E ainda: Precisais renovar-vos, pela transformação espiritual de vossa mente, e vestir-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira justiça e santidade.[39]
Com efeito, não existe santidade sem renúncia e sem combate espiritual. O progresso espiritual envolve ascese e mortificação, que levam gradualmente a viver na paz e na alegria das bem-aventuranças.[40] Os atos de penitência, tais como os jejuns e as mortificações, são apenas meios ascéticos que muito nos ajudam e fortalecem para percorrer, com o coração dilatado e inenarrável doçura de amor, no caminho dos mandamentos de Deus.[41]
UM DOM DO ESPÍRITO
Enfim, por maior que seja o esforço empreendido, a vida renovada e transformada é obra da graça. Pois sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam.[42] E se dizemos obra da graça, dizemos também que é ação do Espírito Santo. Com efeito, a graça é antes de tudo e principalmente o dom do Espírito que nos justifica e nos santifica.[43] O dinamismo da conversão é uma arte espiritual. A arte espiritual é uma arte de viver: somente será um ideal verdadeiro se for arte no Espírito.[44] Sua prática supõe um constante e incessante progredir. É o que diz São Gregório de Nissa: Aquele que vai subindo jamais cessa de progredir de começo em começo, por começos que não têm fim. Aquele que sobe jamais cessa de desejar aquilo que já conhece.[45] 
Tendo superado com generosidade todos os entraves e dificuldades da natureza humana que impedem a ascensão de sua alma para Deus, o cristão sabe que a meta de seu ascetismo é a perfeição da caridade divina que lança fora o temor: Eis o que, no seu operário, já purificado dos vícios e pecados, se dignará o Senhor manifestar por meio do Espírito Santo.[46]
Porém, o percurso ascético da vida cristã é realizado jubilosamente. Preparando-se para celebrar a santa Páscoa, é com alegria que o cristão oferece a Deus seu programa de conversão quaresmal, alegria que é também um dom do Espírito Santo.[47] No seu coração não há lugar para a tristeza. Até mesmo quando, em sua subida que jamais cessa, não lhe faltarem as coisas ásperas e duras que estão no caminho de Deus, que ele saiba abraçá-las com coração aberto e sem sombra na alma.[48]
Fiéis ao dom da graça que nos converte e santifica, de coração contrito e humilde, perseveremos em nossos propósitos de uma vida nova para que nos tornemos melhores.


Concluamos, rezando com Balduíno de Cantuária:
Arranca de mim, Senhor, o coração de pedra. Tira o coração de pedra, tira o coração incircunciso; dá-me um coração novo, coração de carne, coração puro! Tu, purificador dos corações e amante dos corações puros, apossa-te de meu coração e nele habita, envolvendo-o e enchendo-o. Tu, superior ao que tenho de mais elevado, interior ao que tenho de mais íntimo! Tu, forma da beleza e selo da santidade, marca meu coração com tua imagem. Sela meu coração com a tua misericórdia, Deus de meu coração e minha parte, Deus para sempre. Amém.[49]
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Dom Matias Fonseca de Medeiros, OSB,
é monge do Mosteiro de São Bento
do Rio de Janeiro.





[1] Nos converti in melius: Regra de São Bento, cap. 7, 30.
[2] S. LEÃO MAGNO, Sermão 6 sobre a Quaresma, 1: PL 54, 285.
[3] Cf. Hino ferial das Laudes do Tempo Quaresmal.
[4] Rm 7, 19.
[5] Cf. 2Cor 6, 1-2.
[6] Acrescentemos, portanto, nesses dias, alguma coisa ao encargo habitual da nossa servidão: orações especiais, abstinência de comida e bebida; e assim ofereça cada um a Deus, de espontânea vontade, com a alegria do Espírito Santo, alguma coisa além da medida estabelecida para si; isto é: subtraia ao seu corpo algo da comida, da bebida, do sono, da conversa, da brincadeira,... Regra de São Bento, cap. 49, 5-7.
[7] Sl 50 (51), 12.
[8] Cf. Mt 23, 1-36.
[9] Sl 50 (51), 19.
[10] Catecismo da Igreja Católica, n. 1428.
[11] Ez 36,26.
[12] Catecismo da Igreja Católica, n. 1431.
[13] Ef 4, 22-24.
[14] Regra de São Bento, capítulo 49: Da observância da Quaresma.
[15] Regra de São Bento, 49, 1.
[16] Regra de São Bento, Prólogo 35-38.
[17] Cf. Regra de São Bento, 49, 2.
[18] S. LEÃO MAGNO, Sermão 6 sobre a Quaresma, 1: PL 54, 285.
[19] Regra de São Bento, 7, 30.
[20] Regra de São Bento, 4, 42.
[21] Mc 1, 15.
[22] Ez 33, 11.
[23] Sl 102 (103), 8.10.
[24] Regra de São Bento, Prólogo 1; cf. Mc 9, 7.
[25] Regra de São Bento, 72,11; 4, 21.
[26] Sl 94 (95), 8.
[27] S. GREGÓRIO MAGNO, Carta 31: Patrologia Latina (Migne) 77, 706.
[28] S. GREGÓRIO MAGNO, Homilias sobre Ezequiel I, VII, 8: Sources Chrétiennes 327, 244/245.
[29] Sl 17 (18), 45.
[30] Regra de São Bento, Prólogo 1.
[31] Jr 7, 23.
[32] Regra de São Bento, Prólogo 4.
[33] Cf. Regra de São Bento, 4, 55-56.
[34] Regra de São Bento, Prólogo 35.
[35] Regra de São Bento, 1, 5.
[36] Regra de São Bento, 73, 9.
[37] Mt 12, 50.
[38] Rm 16, 1-2.
[39] Ef 4, 23-24.
[40] Catecismo da Igreja Católica, n. 2015.
[41] Regra de São Bento, Prólogo 49.
[42] Rm 8, 28.
[43] Catecismo da Igreja Católica, n. 2002.
[44] HUERRE, D., Vers Dieu et vers les hommes, un chemin de conversion, (Vie Monastique 22), Abbaye de Bellefontaine 1989, 119.
[45] S. GREGÓRIO DE NISSA, Homilia 8 sobre o Cântico dos Cânticos: Patrologia Grega (Migne) 44, 941C.
[46] Regra de São Bento, 7, 70.
[47] Cf. Gl 5, 22.
[48] DE ALMEIDA PRADO, L. Na procura de Deus, Rio de Janeiro, 1992, 92s.
[49] BALDUÍNO DE CANTUÁRIA, Tratado 10: Patrologia Latina (Migne) 204, 516.