terça-feira, 29 de novembro de 2011

Maria, exemplo de meditação para os cristãos

I. INTRODUÇÃO

Os Padres da Igreja falam de Maria como eminente exemplo de criatura que medita. A Virgem é apresentada como “modelo excelentíssimo” de vida contemplativa. Vamos refletir sobre Maria, mulher que se dedica à meditação da Palavra de Deus, espelho de nossa vida cristã e religiosa.
Sabemos que a meditação é hoje um assunto um pouco descuidado nos meios cristãos. Felizmente, está voltando à baila também a partir do novo interesse que suscita a “arte da meditação” nas antiquíssimas tradições orientais (budista, hinduísta, taoísta, etc.).
Maria é a Virgem que medita. Temos uma frase significativa no evangelho de Lucas, quase no final do capítulo 2: Sua Mãe guardava todas estas coisas no seu coração (Lc 2, 51)
II. A MEDITAÇÃO DE MARIA A PARTIR DE SUA EXPERIÊNCIA DE DEUS
Maria teve uma “experiência de Deus” absolutamente única. Ela, como ninguém, “viu com seus olhos” e “tocou com suas mãos o Verbo da vida” (cf. 1Jo 1,1). Precisamente por causa desta experiência de Deus, vivida de modo extremamente profundo, ela se tornou testemunha sem par da encarnação do Verbo.

a) Experiência de Deus a partir da Leitura da Palavra Sagrada

A iconografia tentou exprimir essa experiência incomparável que teve Maria do Mistério divino, presente no próprio filho, mostrando-a, por exemplo, frente ao livro da Palavra, em atitude de lectio divina (vide a imagem de Sant’ana); ou em estado de êxtase, de mãos postas (vide Nossa Senhora do Presépio), diante do Filho recém-nascido: Quem genuit adoravit (Adorou Aquele que gerou).

b) a meditação da palavra a partir do que Maria ouviu

Os relatos de infância, no evangelho de Lucas mostram, em mais de um lugar, Maria como mulher reflexiva, meditante, vivendo uma intensa vida interior. Assim, no momento da Anunciação, Lucas relata a atitude de Nossa Senhora: A estas palavras (de Gabriel), ela... se perguntava o que podia significar aquela saudação (Lc 1,29).

c) Maria: mulher de constante meditação

O diálogo com o Anjo põe em evidência o quanto Maria vive as coisas “a partir de dentro”.
A atitude meditativa é um traço constitutivo da “personalidade” de Maria, a ponto de parecer ser nela algo de habitual. De fato, Lucas a registra mais vezes:
a) No nascimento do Filho, diz que Maria conservava todas estas coisas, meditando-as em seu coração (2,19);
b) Depois do encontro no Templo, o mesmo evangelista registra: E sua Mãe conservava todas estas coisas em seu coração (2,51). Essa referência é tanto mais significativa quando se observa que Lucas a faz valer para o todo o período (uns vinte anos) da “vida oculta” em Nazaré.
Temos ainda dois textos onde Lucas se refere, de modo indireto, mas nem por isso menos eloqüente à fé de Maria, a qual analisa e leva à meditação:
a)      Minha mãe e meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática (8,21).
b)      Felizes antes os que ouvem a Palavra de Deus e a observam (11,28). Efetivamente, supõe-se aqui em Maria um “ouvir” ativo e interiorizante.
III. A METODOLOGIA E O CONTEÚDO DA MEDITAÇÃO DE MARIA, EXEMPLO PARA OS CRISTÃOS
Dos textos acima, vamos nos deter em Lc 2,19: Maria conservava todas essas coisas, meditando-as no seu coração. É o versículo mais expressivo do perfil meditante da Virgem. Situa-se no contexto do Natal. Lucas nos diz aí que, enquanto os pastores só “contam” o que testemunharam e todos ficavam “maravilhados” com o que referiram (Lc 2,18), Maria, por sua parte, conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração (2,19). Enquanto os outros, nada entendendo do que se passa, ficam num nível ainda exterior e superficial, Maria, por seu lado, vai além: busca compreender o sentido íntimo e profundo das coisas que a cercavam.
Vamos tentar examinar estas quatro partes do versículo: a) “todas estas coisas”, b) “no seu coração”; c) “Maria conservava”, d) “meditando-as”.

a) todas estas coisas

Lucas usa o termo “coisas”, de diversas maneiras, para designar o que vai sucedendo, seja em palavras, seja em gestos ou fatos. Para Lucas, “coisas” é o mistério de Deus na vida de Maria, isto é, as coisas divinas que vão acontecendo e que aos poucos Ela vai compreendendo pela sua prática de meditação e questionamento. Coisa é aquilo que às vezes não sabemos chamar o que é. Maria meditava diante de tudo isso e procurava entender.
O termo “coisas” é empregado, várias vezes, por Lucas, significando:
1) As palavras de Gabriel, tão enigmáticas que obrigam a Virgem a se perguntar a si mesma e a perguntar ao Anjo sobre seu sentido.
Da mesma forma, encontramos o referido termo nas palavras dos pastores, de Simeão e mais tarde nas próprias palavras de Cristo. Não sabíeis que devo me ocupar das coisas de meu Pai?;
2) Os fatos, como a visita inesperada dos pastores, a perda dolorosa no Templo e posteriormente os fatos da paixão e da ressurreição;
3) Os sinais, como o presépio, sinal esse dado pelos anjos aos pastores (Lc 2); o sinal de sua própria maternidade virginal; os milagres de Jesus e todos os seus gestos de perdão, cura e salvação.
Pois bem, tudo isso, ou seja, todas estas coisas, eram objeto de atenta consideração por parte de Maria. Ela se admirava de tudo e se perguntava pelo significado de cada coisa. A Virgem procurava descobrir nos fatos da vida a voz de Deus e seus apelos. Para Ela, a Palavra de Deus ou mensagem viva não ressoava só nas Escrituras, mas nos fatos da vida e também no fundo do seu coração.
O Papa João Paulo II, falando sobre a Virgem Santíssima e sua vida de intensa meditação, assim escreve: À imitação da Virgem Maria, queremos viver à escuta da Palavra de Deus, atentos a seus apelos em nós mesmos, nos homens, nos acontecimentos e em toda a criação.
Para Maria, o Evangelho não era, como para nós, um livro, mas uma história viva e, mais ainda, uma pessoa concreta: a Palavra [o Verbo] encarnada em seu seio e convivendo familiarmente com ela.

b) em seu coração

O coração, na mentalidade bíblica, como sabemos, é a fonte de nossa vida mais íntima e profunda: do pensar e do lembrar, do querer e do decidir. Ele não é apenas o espaço das emoções superficiais e passageiras, como quer a mídia moderna. O “coração” bíblico é a mente, a consciência, a “alma”. É o nosso “mundo interior”, incomparavelmente mais vasto e mais rico do que todo o mundo exterior – esse mundo que a ciência moderna mostra já tão complexo em suas micro e macro estruturas.
Desta forma, a meditação de Maria é feita com o seu coração, ou seja, não é apenas um pensar “cerebral”. É um pensar “cordial” e mesmo “visceral”, feito de intuição e sensibilidade, mas sobretudo de muito silêncio e questionamento. É o pensar da sabedoria. A Virgem não é só exemplo do teólogo, que reflete teoricamente a fé, como foi dito pelo Cardeal Newman. Ela é mais ainda exemplo daquele que medita a Palavra divina para doá-la aos seus irmãos.
O religioso ou a religiosa é aquele que medita os fatos, os sinais, as palavras, a realidade de sua vida, do seu convento ou mosteiro com o coração, procurando descobrir em tudo a Palavra de Deus para encarná-la e dá-la aos seus irmãos.
c) maria conservava...
A Virgem guardava no tesouro de seu coração e de sua memória as maravilhas de Deus, como um tesouro sem preço. De fato, o “conservar” de Maria era ativo. Ela voltava sempre às coisas que tinha vivido na companhia do Filho para compreender-lhes o significado transcendente.
Conservar não é apenas memorizar, é lembrar ativamente. É guardar algo de precioso para ser vivido. A partir do que se conserva, orienta-se o pensar, o falar e o agir. Hoje, com o avanço da tecnologia e os computadores, podemos imaginar melhor o que significa conservar ou guardar na memória ou no coração.
É a meditação que atualiza e dá sentido àquilo que conservamos em nossos corações. E isto é a mais bela e profunda meditação. Assim agiu Maria. Podemos agir do mesmo modo, atualizando a Palavra de Deus, os seus fatos, sua vontade, presentes dentro de nós e a partir daí fazendo uma releitura da vida e do mundo. Foi o que fizera Maria.
O próprio Cristo instituiu o memorial de sua entrega, ordenando: “Fazei isso em memória de mim!” (Lc 22,19). E uma das funções do Paráclito será “relembrar” aos discípulos tudo o que Ele ensinou, levando-os assim à “verdade plena” (Jo 14,26; 16,13).
Conservamos tudo em nosso coração para lembrar ou relembrar aos homens e ao mundo. Para isso, é indispensável a meditação. É esta que nos faz lembrar. E o lembrar, na dimensão bíblica, não é apenas ter presente na memória, é sobretudo comparar os fatos que vivemos com o que está acontecendo no momento.
O grande perigo é “esquecer”. Esquecer é a “morte do sentido”. Foi o que aconteceu aos discípulos em relação às palavras de Jesus, censurados por isso após a Ressurreição: “Lembrai-vos do que vos disse...” (Lc 24,6; cf. ainda os vv. 8.25-27.44-46).
Não foi assim com Maria de Nazaré. Ela não esqueceu as palavras e as obras de Deus. Sua meditação era um hábito. Porque era para ela uma forma de amor. Pois quem ama, lembra. Assim se expressa o Profeta Isaías:
Sião dizia: O Senhor... esqueceu de mim. Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? (...) E mesmo que ela o esquecesse, eu nunca te esqueceria. Eis que estás gravada na palma de minhas mãos... (Is 49,14-16).
Importa saber que a memória bíblica não é simples lembrança ou recordação, entendida como mera representação do passado morto. É antes ressurreição do passado, recriação do que foi, fazendo com que seus efeitos nos alcancem. É, portanto, atualização, renovação.
d) meditando-as...
Lucas usa uma palavra grega para dizer que Maria meditava. Ela confrontava as palavras, sinais, os eventos etc. e os procurava entender. Através desse processo, a Virgem, por trás dos “acontecimentos da vida”, procura enxergar a mão amorosa e onipotente de Deus. 
Mas o confronto iluminado desses eventos se dá especialmente com as sagradas Escrituras. Maria de Nazaré é uma mulher familiarizada com as Escrituras. Vale para ela o que diz São Paulo em 2Tm: Desde a infância conheces as Sagradas Escrituras (3,15). É, exatamente, o que nos mostra Maria Santíssima no Canto do Magnificat com suas numerosas citações ou alusões bíblicas.
Mais um exemplo de Maria para refletirmos. Para Maria, como para todo membro piedoso do Povo de Israel, as Escrituras santas são o princípio de sua formação. São a cartilha de fé e vida. Elas fornecem o prisma pelo qual pode-se perceber o mundo e todos os acontecimentos da história. Assim, a Virgem vê tudo “à luz das Escrituras”. Mas não se trata aí das escrituras tomadas “ao pé da letra”, mas das escrituras ouvidas e memorizadas de modo vivo e criativo.
IV. A MEDITAÇÃO FEZ DE MARIA, MULHER SÁBIA E SANTA
Nas Escrituras, especialmente nos Salmos, quem “medita” a Palavra é ou torna-se sábio. Afirma-o mais de uma dezena de vezes o Salmo 119. Objeto da meditação do sábio são também as obras de Deus (Sl 77,13; 143,5). Essa meditação é constante: “dia e noite” (Sl 1,2).
A meditação do sábio é como o murmúrio do coração e mesmo da boca (Sl 19,15; Sl 49,4). Por isso se diz: A boca do justo medita a sabedoria (Sl 37,30); Minha língua o dia inteiro medita tua justiça (Sl 71,24). A meditação dos antigos era acompanhada com o “murmurar” dos lábios, como se estivessem em colóquio vivo com Deus. Isso lembra a repetição mântrica e a “ruminação” monástica.
A essa luz, Maria, mulher de meditação constante, emerge como figura da mulher “sábia”, ou como a “filha da sabedoria”. Mas quem é seu mestre espiritual? É o Espírito, em virtude do qual concebeu a Palavra. Diz Jesus que o Pai esconde seus segredos aos “sábios e entendidos” deste mundo para “revelá-los aos pequeninos” (Mt 11,25-26). Ora, a Virgem deve ser tida como “a primeira entre os pequenos” do Senhor. “Ela sobressai entre os humildes e pobres que esperam em Deus” (Lumen Gentium 55) e que Ele elege como confidentes privilegiados dos Mistérios do Reino.

V. CONCLUSÃO

Acrescentemos que o procedimento existencial de “conservar e meditar no coração” todas as coisas e acontecimentos acompanhou Maria durante toda a sua vida e não apenas na infância.
Maria foi mulher meditante também durante a vida pública de Cristo, em sua paixão, sob a cruz, depois da Páscoa e também após a Ascensão, quando começou a vida e a missão da primeira Comunidade cristã. Continuamente ela olhava para o filho, para o que ele fazia e dizia e se perguntava sobre o que tudo aquilo podia significar no Plano de Deus; sobre que aspectos do Mistério divino estavam aí se revelando. Aliás, todas as mães lançam sobre a vida dos filhos um olhar interrogativo e ao mesmo tempo interpretativo. Mas o caso de Maria é único, como único era seu filho.
Foi em particular aos pés da Cruz que a visão de Maria foi posta à mais dura prova. Quando Maria viu o filho pendendo da Cruz, que contemplava aí? “Ela, intrépida, de pé, junto da cruz do Senhor, ensina a contemplação da paixão” – diz um documento do Vaticano para os Religiosos.
A lição essencial que fica é que a experiência de Deus, como a viveu a Mãe de Jesus, tem sua “hora de glória”, como em Caná, mas também tem sua “hora de trevas”, como no Gólgota. Ver em tudo a presença de Deus e permanecer sempre em comunhão com Ele é o objetivo de toda meditação, a começar pela peregrinação à procura de Cristo.
Imitemur et nos, fratres, piam Domini Matrem (Imitemos, nós também, irmãos, a piedosa Mãe do Senhor).

MARIA

Ó Mãe por todos cantada,
Mãe do sol de suma justiça,
Mãe do povo cristão,
Glorificada no Oriente e no Ocidente,
dá-nos a união fraterna,
a nós que superamos a discórdia.
Dá-nos tua proteção materna,
para que todos possamos unir-nos
no corpo místico do teu Filho,
Jesus Cristo, nosso irmão e nosso Deus.
E dá-nos que te cantemos nossa alegria universal
com uma só e única voz.
ORAÇÃO RUSSA.





Pe João Medeiros Filho

Consultor acadêmico da Faculdade Dom Heitor Sales